Na ânsia de proteger as crianças, estamos a criar para o futuro adultos dependentes, sem iniciativa e incapazes de lidar com as frustrações.
Embora o teu filho já tenha condições de colocar os brinquedos no lugar, és tu que tratas da desarrumação pela casa. Sempre que a tua filha se recusa a jantar, esperas que ela tenha fome e preparas um lanche. A criança esquece-se de levar o caderno para a escola, e desdobras-te para fazer o material chegar lá. O pequeno fica doente e precisa tomar uma injeção, compra um presentinho fora de hora para compensar o desconforto. Se alguma das afirmações acima é verdadeira para ti, um alerta:
Essa postura pode estar a deseduca-lo.
“Pais que direcionam e facilitam demais a vida dos filhos não dão oportunidade para que eles tentem resolver os seus próprios problemas, impedindo o seu desenvolvimento”, diz a educadora Flávia Vivaldi, que pesquisa a construção da autonomia infanto juvenil há cinco anos.
Nos últimos 15 anos, um número crescente de estudos passou a investigar a super proteção parental e suas consequências. Os mais recentes, divulgados ao longo de 2015 no Journal of Children and Family Studies, publicação que reúne artigos científicos de universidades do mundo todo, apontam: pais que resolvem os problemas pelos filhos e se intrometem demais nas suas atividades sinalizam aos pequenos que o mundo é ameaçador, aumentando os seus níveis de ansiedade e alterando o bem-estar emocional e a percepção que eles têm de si próprios e das suas capacidades.
“Essas crianças tornam se impulsivas, egoístas e se transformam em jovens imaturos, que não assumem responsabilidades. Têm pouca confiança em si mesmas, quase nenhum autocontrole e muita dificuldade em ser gratas”, avisa Adriana Ramos, coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Moral, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), uma das principais referências dessa temática no país.
Essa forma de educar rendeu até um nome: são os pais helicópteros, que estão sempre a sobrevoar os filhos para evitar que sofram e se frustrem. Ao menor sinal de perigo, aterram e prestam lhes socorro. Com a melhor das intenções e expectativas muitas vezes bem altas, esse grupo acaba assumindo responsabilidades pelas crianças, que geralmente são matriculadas numa série de atividades, e interferindo nas escolhas delas.
Autora do recém-lançado livro How to Raise an Adult, (em tradução livre, “Como criar um adulto”), Julie Lythcott-Haims, ex-reitora da Universidade de Stanford, observou numa década no cargo que, a cada ano, os caloiros eram mais brilhantes, mas menos capazes de cuidar deles próprios. Os seus responsáveis, por sua vez, foram se tornando mais e mais intrometidos.
“Dar liberdade aos filhos significa tolerar um pouco de incerteza em troca de ensinar as habilidades de que eles precisam para ser competentes e confiantes”, afirma ela, que teve a ideia para o livro quando, depois de um dia atendendo pais ansiosos e jovens sem iniciativa, se surpreendeu cortando o bife para o próprio filho, então com 10 anos – que, claro, já tinha condições de fazê-lo sozinho.
De helicóptero a submarino
No livro Fun-Filled Parenting: A Guide to Laughing More and Yelling Less (em tradução livre, “Maternagem divertida: um guia para dar mais risada e gritar menos”), a americana Silvana Clark usa uma metáfora para definir o perfil de adulto a que os pais devem dar preferência, o submarino, que está por perto, mas não é onipresente – ele não abandona ninguém nem deixa de entrar em contato, mas só emerge quando necessário.
O segredo (e a grande dificuldade) é encontrar o ponto certo entre negligência e superproteção. “As famílias atuam como um pêndulo, oscilando entre a permissividade e a autoridade”, diz a pesquisadora Adriana Ramos, que também coordena a Escola para Pais, projeto de orientação de colégios municipais de Campinas (SP). Segundo ela, as famílias devem dialogar e ouvir as crianças sem fazer todas as vontades delas; incentivar a sua participação para que reflitam sobre as normas e as consequências das suas atitudes; e apresentar os limites de forma clara.
Veterinária de formação, Vanessa Nassif, de Taubaté (SP), teve contato há quatro anos com o programa. Mãe de dois meninos, com 5 e 15 anos, ela sofreu para encontrar o equilíbrio.
“Nós, pais, ficamos perdidos, pois, em geral, somos fruto de uma educação muito autoritária. Eu acabava por ser condescendente demais”, conta.
Os encontros a ajudaram a entender as fases de desenvolvimento dos pequenos e pensar em intervenções mais construtivas. “Não se trata de seguir um manual ou fórmula mágica, e sim de escolher uma educação mais consciente, de escuta da criança.” Hoje, escaldada, ela prefere acordar alguns minutos mais cedo para respeitar o tempo do filho menor para se arranjar do que realizar a tarefa por ele.
O diálogo, o estímulo à nomeação de sentimentos e os combinados foram incorporados pela família, mas também foram estabelecidas regras inegociáveis, como tomar banho todos os dia, escovar os dentes, tratar os outros com educação. Quando conflitos ocorrem, são abordados de forma sensata, e não superprotetora. Em vez de ir a correr comprar um brinquedo para substituir um perdido, por exemplo, recomenda-se que os pais falem algo como: “É uma pena, mas vais ter que lidar com isso”.
Para a advogada Ana Carolina Marcari, de Poços de Caldas (MG), uma gravidez difícil e a própria educação, cercada de cuidados, foram determinantes para o excesso de zelo com o filho, Otávio, hoje com 10 anos. Ela conta que não deixava o menino andar de bicicleta nem brincar no escorregador. Só percebeu que estava a exagerar quando foi chamada na escola: a professora comentou que o pequeno, de tão apreensivo, não aproveitava o momento do recreio, importante para o desenvolvimento da coordenação motora. “A escola me ajudou a abdicar de alguns medos, mas ainda preciso melhorar”, afirma ela, depois de assumir que, no meio da tarde da nossa entrevista, já tinha ligado sete vezes para o filho.
É comum essa mania de super proteção das crianças invadir a escola. Segundo Flávia Vivaldi, com frequência os pais se envolvem em conflitos, justificando atrasos de adolescentes e até solicitando alteração do calendário escolar por uma questão da família. “Hoje, há uma preocupação em evitar traumas e não abalar a autoestima, algo que não existia 20 anos atrás. Além disso, muitas vezes há uma grande culpa por passar boa parte do tempo a trabalhar. Isso não é bom. A criança deve saber que trabalhas para garantir a educação, saúde e bem-estar dela”, explica Zélia Maria Moreira, diretora da escola de Otávio, onde são organizadas reuniões para os pais. Quem tem filho único (como Ana Carolina) recebe atenção especial nesses encontros. “Se a criança está acostumada a ser o centro das atenções, é natural que tenha problemas para lidar com colegas na escola, emprestar brinquedos etc.”, aponta.
Pequenas frustrações, um pouco de solidão e até de tensão para resolver um novo desafio – como o simples manejo dos talheres pela primeira vez – ajudam a formar indivíduos independentes, dispostos a enfrentar o mundo e, na hora certa, aptos a arriscar. Por isso, quando o desejo de proteger o filhote e a angústia de expô-lo a uma potencial decepção apertarem, respira fundo. Nesses momentos, Ana Carolina se lembra do conselho de uma amiga: “Carol, deixa o menino raspar os joelhos!”
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